quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Sacerdócio na História (Parte I)

"Os Padres da Igreja"
André Bernardo

Os livros de História ensinam que a Antiguidade é o período que abrange desde a invenção da escrita, por volta de 4 mil a.C., até a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C. Para a Igreja Católica, o período conhecido como ‘Patrística’ vai do século 1 d.C., que marca o início da Era Cristã, segundo o calendário gregoriano, à morte do Papa Gregório Magno, em 604 d.C. O termo ‘Patrística’, aliás, se refere aos ‘Padres da Igreja’ – teólogos que desfrutavam de inquestionável autoridade eclesiástica em termos de doutrina, como Santo Agostinho, São Jerônimo e Santo Ambrósio, entre outros. Mas, ao contrário do que o título dá a entender, nem todos os ‘Padres da Igreja’ foram, por assim dizer, padres. “Alguns eram sacerdotes, sim, mas muitos foram bispos, diáconos e até leigos”, explica Dom Justino de Almeida Bueno, mestre em Teologia e Professor de Patrologia da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. O título de padre, inclusive, só começou a ser difundido entre as comunidades cristãs a partir da Idade Média. Na Antiguidade, esclarece Francisco José Silva Gomes, Professor de História Antiga e Medieval da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o termo mais usado para designar a figura sacerdotal era presbítero. “Logo, os presbíteros começaram a ser chamados de ‘pai’ pelos fiéis. A partir da Idade Média, a palavra ‘padre’ se impôs e a ‘presbítero’ caiu em desuso. Hoje em dia, há quem pense que presbítero é o sacerdote da Igreja Presbiteriana”, observa Francisco José. Segundo os especialistas, a Patrística pode ser dividida em dois momentos: o período Pré-Niceno – anterior ao Concílio de Nicéia, de 325 d.C. – e o período Pós-Niceno.


Os três primeiros séculos do Cristianismo não foram nada fáceis. Muito pelo contrário. A começar por Nero, em 64 d.C., gerações e mais gerações de imperadores romanos dedicaram suas vidas a perseguir implacavelmente os cristãos. Muitos preferiam morrer como mártires a renunciar à fé em Cristo. “Até o século IV, o cristianismo era considerado ilegal e, por isso mesmo, seus seguidores eram perseguidos. Muitos eram acusados de sedição, impiedade e ateísmo por não cultuarem deuses e imperadores. Nesta situação, os sacerdotes eram líderes de comunidades isoladas. Eles se destacavam como pregadores, mas ainda não havia formação específica ou dedicação exclusiva”, afirma Pedro Paulo Abreu Funari, Professor de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade de São Paulo (USP) e Professor de História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Encorajados pelos ensinamentos dos apóstolos, as primeiras comunidades cristãs logo estabeleceram um modelo de governo eclesiástico e nomearam bispos, presbíteros e diáconos para ensinar a palavra e difundir a fé. “Desde os primórdios, as missas consistiam no centro da vida religiosa da comunidade cristã”, acentua Pedro Funari.


Ainda no século I, os primeiros cristãos desenvolveram um tipo de culto – muito semelhante ao atual. As primeiras comunidades se reuniam aos domingos, o Dia da Ressurreição, em vez do sábado, o Sabbat judeu. Nestas reuniões, celebravam a Eucaristia, estudavam as Escrituras e entoavam hinos de louvor. Na época, não havia igrejas ou basílicas. Com medo de ataques e perseguições, reuniam-se nas casas uns dos outros. “Até o século IV, não havia paróquias, no sentido estrito da palavra, porque os edifícios de culto, ou igrejas, eram proibidos. Os primeiros cristãos só podiam oficiar o culto em lugares privados, às escondidas”, ressalta Pedro Funari. “Nesta época, ainda não havia celebração litúrgica para os dias da semana. A liturgia era dominical ou, então, em ocasiões especiais, como na Páscoa, em Pentecostes ou, a partir do século IV, no Natal”, esclarece Francisco José. Embora os primeiros cristãos tivessem que se reunir às escondidas, não procede a história de que muitos deles eram obrigados a se refugiar em catacumbas para fazer celebrações litúrgicas. Quem garante é Francisco José: “As catacumbas eram cemitérios coletivos e, como tal, tinham que ter licença do governo para servirem de necrópole (cidade dos mortos). Além disso, eram lugares fiscalizados pelas autoridades romanas”.


Mas e como eram essas primeiras celebrações litúrgicas? Segundo estudiosos, os cristãos se reuniam, geralmente, pela manhã. Na assembleia, liam os profetas judeus, mas também os Atos dos Apóstolos e os Evangelhos. A certa altura, os presbíteros (ou bispos, em cidades como Roma, Antioquia e Alexandria) comentavam os textos lidos e os fiéis teciam comentários ou faziam observações a respeito da leitura. Por vezes, alguns membros discordavam das interpretações das Escrituras. Cabia ao bispo desfazer qualquer mal-entendido com base na Sagrada Escritura e na Tradição Oral (transmitida pelos apóstolos). Depois de comentar o texto sagrado, bispos e presbíteros abençoavam o pão e o vinho e os distribuíam entre os presentes. Ao término da celebração, os diáconos ficavam responsáveis por levar pão e vinho a quem não pôde comparecer à reunião. Nas primeiras comunidades cristãs, alguns presbíteros eram casados e tinham filhos. E se dedicavam a atividades paralelas para garantir o sustento da família. “O celibato já era valorizado desde os primórdios. Paulo recomenda o celibato, mas não o exige. Neste período, o celibato era apenas uma tendência e, não, uma lei”, salienta Paulo Augusto de Souza Nogueira, Professor de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). “Nos primórdios do cristianismo, os padres não só podiam ser casados, como muitos eram. Pedro é um exemplo clássico. Ele tinha até sogra!”, lembra Francisco José.


Nos primeiros séculos do Cristianismo, os presbíteros, a exemplo dos demais clérigos, não se trajavam de modo distintivo. Só abriam exceção quando vestiam sua melhor túnica para a celebração litúrgica. “A partir do século V, os costumes romanos passaram a influenciar a indumentária clerical. Desde então, as vestes litúrgicas começaram a se distinguir das roupas do cotidiano. Os bispos usavam uma indumentária e os presbíteros, outra. Mas posso assegurar que as vestes católicas mantiveram uma tradição fantástica. A iconografia da época mostra que não há praticamente diferença entre a indumentária do século V e a do século XXI”, afirma Francisco José.

- Santo Agostinho, Padre e Doutor da Igreja

A implacável perseguição romana durou até 313 d.C. Neste ano, o imperador Constantino promulgou o famoso Edito de Milão, que concedia liberdade de culto a todos os cristãos. Em 380 d.C, foi ainda mais longe. E proclamou o Cristianismo como religião oficial do Estado. A partir de então, passou a usar símbolos cristãos em suas moedas, declarou o dia de domingo como o dia do descanso e, principalmente, começou a construir basílicas, como a de São Pedro, em Roma. “Tudo mudou muito a partir do século IV. Igrejas foram legalizadas e passaram a ocupar lugares públicos de destaque. A hierarquia eclesiástica, que ainda era muito incipiente, desenvolveu-se rapidamente. Os sacerdotes passaram a ter formação, embora ainda não houvesse seminários”, explica Pedro Funari, da USP e da UNICAMP. Com o fim da perseguição romana, surgiu a necessidade de codificar as doutrinas básicas da Igreja Cristã. Pior do que a espada dos romanos, só mesmo a língua dos hereges. Foi o próprio imperador Constantino, aliás, quem convocou o concílio de Nicéia – atual Iznik, na Turquia –, em 325 d.C. Dos 1.800 bispos convocados, apenas 250 compareceram ao primeiro grande concílio ecumênico da História. Dali em diante, outros concílios seriam realizados sempre em momentos de grave tensão teológica e pastoral com o propósito de resolver problemas que afetavam a Igreja. Não por acaso, Agostinho pode ser considerado uma das figuras mais atuantes da Patrística. “Santo Agostinho morreu em 430 d.C., mas desperta fascínio até hoje. A quantidade de livros que são escritos sobre ele é impressionante. Até na China, tem gente escrevendo tese sobre Santo Agostinho”, afirma Dom Justino de Almeida Bueno.


A partir do século IV, cada membro da comunidade passou a fazer uma pequena contribuição (dízimo) ao bispo, que ficava responsável por administrar o dinheiro da Igreja. Em cada diocese, o dinheiro arrecadado servia para custear as despesas dos clérigos, manter o funcionamento da igreja e atender a necessidade dos menos favorecidos. Esmolas eram pagas regularmente a viúvas e órfãos. Cada diocese mantinha um hospital que, a exemplo dos mosteiros, oferecia abrigo para pobres, doentes e viajantes. Cada bispo dirigia também uma escola particular, onde educava os aspirantes a presbíteros e diáconos. “Alguns padres viviam em suas próprias casas, com suas respectivas famílias. Outros moravam com o bispo, como é o caso de Agostinho em Hipona. Nestes casos, os padres dependiam exclusivamente do que recebiam dos bispos. Seminários, por exemplo, nunca existiram antes do século XVI. A educação formal dos padres era de responsabilidade dos bispos”, esclarece Francisco José. Já nesta época, as primeiras comunidades cristãs foram buscar inspiração num antigo costume romano de adoção para instituir a tonsura. O hábito de raspar a cabeça do clérigo – presbítero ou diácono – indicava que ele tinha sido “adotado” na família de um bispo.

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